domingo, 16 de fevereiro de 2014

O número, ou medida, e a aparição do ser

O número, ou medida, e a aparição do ser
são dois antônimos exatos; eu queria
que fossem convergentes e pus-me a conceber
as músicas da mente, as artes da poesia,
   como uma tradução da eterna geometria
impressa no fugaz. A luz do entardecer,
no entanto, eu já rapaz, não me deixou viver
em paz: por muito ambígua, jamais a soma fria,
   os algarismos que Pitágoras sonhara;
somava-lhe os pedaços porque a mente não pára,
mas nunca dava com a medida imaginada.
  Naquela tarde um pássaro de garganta cortada
afinal fez-me ver como a emoção separa
e une tudo outra vez às vésperas do nada.
                      (Bruno Tolentino; a imitação do amanhecer, I. 10)

Ó solidão, conjuração do elementar

Ó solidão, conjuração do elementar
nos recessos do ser, ó música intranquila
que vais tecendo a teia única apesar
de não durar senão na noite da pupila!
   Ó solidão tentacular, ó longa fila
de fantasmas ainda ou outra vez no ar,
no centro doloroso de um nada que vai dar
ou no mesmo lugar, onde é inútil segui-la,
   ou, em lugar da aparição, no incompreensível!
Alexandria, solidão que me envenenas,
a História é música também, música apenas,

    é tudo a fuga musical subindo ao nível
enfim escultural do sensível, das cenas
irrevogáveis esculpidas no invisível!

  ( Bruno Tolentino; A imitação do amanhecer; II. 75)

sábado, 1 de fevereiro de 2014

Trecho de A Selva sobre os garimpeiros sertanejos - Ferreira de Castro

Alberto relera todos os livros que trouxera, escrevinhara as
suas emoções de desesperado em todo o papel em branco que
encontrara e conhecia já, pelas costas, todas as cartas do
baralho com que enchia algumas horas da negra solidão. A barba
crescia-lhe durante a semana, só ao domingo encontrando
navalha nas mãos de Alexandrino, lá fora, no Paraíso.


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   Desleixar-se: o cabelo desgrenhava-se livremente sobre os
olhos amodorrados no rosto magro e oblongo, e calças e blusas,
todas engelhadas, falavam de renúncia à estética física, que
tanto preocupara a sua juventude em Portugal. Não valia a
pena! Não valia a pena!
    Nada havia a fazer. Para trás, o Igarapé-assu, só alcançável
agora de canoa, navegando sobre a trilha onde no Verão
choutavam cavalos. E quem tava lá? Os mesmos párias, os mesmos
prisioneiros da selva, com uma vida sempre igual, todos à
espera do meio litro de cachaça que Juca Tristão, com ar de
esmola, lhes vendia ao domingo. Agostinho e Firmino amavam a
sua convivência e, de quando em quando, escapavam-se para lá.
Ele acompanhava-os, para não ficar sozinho na barraca, embora
Firmino jurasse que os índios não abandonavam a maloca, por
falta de transportes, desde que a floresta escondia as raizes
na água.. Eram tardes quase sempre tristes, fizesse sol ou
chovesse, a escutar os Cearenses, os seus sonhos derrotados,
os seus amores interrompidos - todo o carinho, todo o coração
lá longe, na distante terra da nascença. Sabia já de cor a
história deles e às vezes, de regresso, sentado no meio da
canoa, ecoavam de novo no seu espírito frases que lhes ouvira.
"Era um capanga valente capaz de espantar a António Silvino".
"Naquele ano de seca, eu deitei a boca ao tijuco para ver se
ainda chupava umas gotas de água. Depois, não pude mais e bebi
urina dos cavalos. Eu vi o meu tio Alfredo endoidecer de sede
e correr, correr atrás de nós, com os braços abertos, que até
parecia uma alma penada. Nós vínhamos a fugir do sertão e ele
caiu e lá ficou a estrebuchar, enquanto os urubus não deram
cabo dele".
    De tão nítido, Alberto via também o espectáculo que as
palavras sugeriam. O vulto aloucado de sedento, correndo atrás
do êxodo, colava-se-lhe nas pupilas como uma obsessão. E lá
tava a bracejar, aberta a boca, desvairados os olhos, trémulo,
roto, empoeirado, cobrindo com a nua angústia,


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estampada na terra ardente, a galeria vegetal por onde a canoa
singrava.
    A pensar nas bravas gentes, Alberto enternecia-se e agora
compreendia-as melhor. Já eram outras para ele, assim vestidas
com farrapos dramáticos que a Europa ignorava. As imensidades
nevadas e as areias dos desertos haviam já florido em muitos
jardins literários. Desconhecia-se, porém, o drama do Ceará,
que a todos ultrapassava. Nos desertos, até as feras eram
raras, no sertão, viviam homens. Lares fecundos, gleba
cultivada, cada palmo que desabrochava era sempre uma
esperança de futuro melhor. De dia suava-se no trabalho e à
noite um violão gemia sob o feitiço do luar. Havia-os tão
agarrados ao terrunho, que cuspiam com desdém sempre que lhes
surgia, a desafiar a ambição, algum Cearense enriquecido nas
brenhas do Amazonas. Qual! Eram lorotas, conversa fiada, pois
muitos morriam lá com febres. Mas, um dia, a terra nativa
escaldava a palma gretada dos pés. Os rostos amofinavam-se e
entrava o desassossego. Alguns, mais crentes, apresentavam
ainda argumentos e exemplos de outros anos em que o mal não se
desenvolvera. Escutavam-nos de olhos baixos, em silêncio,
todos desejando neles acreditar. O sol, porém, queimava cada
vez mais: as fontes já haviam perdido a melopeia,
transformando-se em tristes lacrimários. A terra começava a
arder. Secavam primeiro as plantas, iam-se depois os arbustos
, e árvores velhas, que estavam na memória de muitos que à
sombra delas tinham brincado, punham-se a murchar também.
Vinha a aflição, o terror. Nos córregos, outrora múrmuros, só
se ostentavam agora limos ressequidos e todas as bocas
clamavam em vão pela água que não existia. Caíam mortos os
animais, outros volviam-se furiosos e sempre, sempre, o sol
dos trópicos a dardejar sobre a terra ,em brasa os seus raios
fatídicos. Um bafo ardente de morte percorria todo o sertão. A
própria Lua crestava e já não eram modinhas que ouvia ao som
dos violões. Agora, somente gritos de angústia subiam dos
pobres casebres até ela e se espalhavam pelo céu,


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a implorar clemência aos deuses indiferentes.
    Dava-se, então, o êxodo, mais trágico e numeroso do que o
dos antigos hebreus nos domínios da cristandade. Eram
caravanas sem fim ao longo da terra em fogo. O sertão ficava
abandonado, com suas planuras ígneas e lombas a arderem
também. Quem entrasse nele, a trote largo de cavalo, só
encontraria destroços, restos das vidas que se foram,
esqueletos mirrados e, para além, na linha sangrenta do
poente, lá ao fim da terra esburgada, a ameaça de não volver.
Partiam muitos, quando soava o rebate para a fuga, mas muito
poucos chegavam à beira do mar redentor. O pó do caminho ia
cobrindo, todos os dias, corpos exânimes de velhos e de
crianças, que os abutres, mais tarde, viriam devorar. As mães,
por vezes, não resistiam a essa marcha aterradora e
quedavam-se debruçadas sobre os filhos primeiro em choro
forte, depois com os olhos fixos numa torturante obsessão.
Quando a morte se apiedava, já para elas o Mundo tinha morrido
há muito.
   Cada nuvem que se formava era uma promessa, um castelo de
esperanças irisadas lá no alto. Mas logo as ameias errantes se
desfaziam e o céu voltava a ficar límpido, muito límpido, sem
que um só pingo de chuva caísse daquele azul tão puro sobre a
terra tão incandescida. De novo desiludidos, os retirantes,
vergados ao drama intenso, esfarrapados, sedentos, famintos,
alcançavam, um dia, a capital do Estado, que se mirava sobre a
riba atlântica, e dali partiam, aínda uma vez, para outra
odisseia. Uns, rumo ao sul, à terra roxa de São Paulo, onde
floria o café, outros, quase todos, cabeça voltada ao
Amazonas, esperando que a selva fosse mais generosa para eles
do que havia sido para tantos dos seus vizinhos. Era a
conquista da fonte que o sertão Lhes negava. Era a troca da
terra que matava por falta de água, :pela terra que matava por
ter água em excesso.


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   Mas ninguém podia ir por seu pé. Pobres de tudo, menos de
coração terno, deixavam-se definhar por carência de passagem.
Chegavam então os enviados dos seringais, que lhes conheciam
as vicissitudes e os levavam em grossa récua. E se não os
encontravam em Fortaleza, porque o ano fora ameno, iam
recrutá-los mesmo dentro das suas casitas rústicas, por todas
as várzeas e colinas do romântico sertão. A ameaça de nova
seca e o desejo dum pecúlio, modesto que fosse, submetiam-nos
aos engajadores.
   Mas, lá longe, mal chegados à Amazónia, o que queriam era
voltar. Mesmo os que se haviam arrastado em êxodo, deixando,
durante o trajecto, os pais velhinhos em delírio, ou mortos os
filhos de tenra idade, não pensavam noutra coisa além do
sertão distante. Todas as riquezas da selva e toda a
imensidade da sua rede botânica, que compensava os longos dias
de sede, e desvalorizavam quando eles as punham em confronto
com o pobre lugarejo em que tinham nascido. A brenha estava
cheia da alma humilde do sertão e era ela quem rompia e quem
chorava na maranha interminável.
   A vê-la, a ouvi-la e a evocá-la, Alberto comovia-se e já não
julgava por bem seus assomos de altivez e seu orgulhoso
isolamento no convés do navio. Mais do que as gentes, o
trabalho e o meio ambiente o desalentavam agora.
 

sexta-feira, 31 de janeiro de 2014

Eternidade - a legenda do pórtico (Ferreira de Castro)

Nós não queremos morrer! Nós não queremos morrer!
     Meu irmão longínquo que te perdes na hipótese, sobre o curso de todos os séculos vindouros, escuta!  Escuta o nosso desespero de seres efémeros, esta ansiedade infinita que nos tortura há muitos milênios, este grito doloroso e impotente: Nós não queremos morrer! A nossa vida está pletórica de iniquidades, de misérias, de renúncias e de sofrimentos - e nós, apesar disso, não queremos morrer.
     Tu, meu irmão longínquo, que já mataste a morte, que já criaste um novo mundo sobre o mundo em que vivemos, que já tens uma outra noção do Homem e do Universo, dificilmente compreenderás como nos foi possível viver assim. Este livro explicar-te-á, porém, o nosso drama. É a nossa história que eu te ofereço aqui, a história de todos nós, que queremos ser eviternos e temos de morrer, que queremos ser felizes e nunca o somos, integralmente. Este livro será como uma voz remota, saída de uma noite negra e pânica, que dua não sabemos há quantos milhões de anos e durará, talvez, muitos mais ainda, uma voz que te dirá quanto sofremos e lutamos para que tu possas viver doutra maneira e sorrir, porventura, de nós próprios...
    Tu és a única resposta que encontramos para as nossas angustiosas interrogações. Uma resposta que me alvoroça e, simultaneamente, me desespera, porque eu queria ser como tu, quer ter nascido quando a inteligência humana tivesse assassinado a morte, quando a terra não estivesse como agora, traspassada por tanta dor. E não posso! Não posso! Eu não quero morrer e tenho de morrer, sabendo que não morreria se nascesse mais tarde, não sei quando, mas um dia, o dia em que tu nasceste.
     Não importa o século em que venhas a existir. Estas páginas estão cheias da tua presença e quanto mais longe estiveres de mim, mais perto eu estarei de ti, pressentindo-te, adivinhando-te, como o único consolo e a única razão moral da nossa existência. A tua vida terá, no espaço e no tempo, horizontes que a maioria dos meus contemporâneos dificilmente concebe. Eu sei isto, eu possuo esta certeza, eu vivo com esta verdade e, contudo, tenho de renunciar a ela, vencido por essa voz que vem de ti para mim e me desvaia, me humilha e torna ainda mais desditoso:
  - Esta é a época que tu sonhaste, mas já não poderás viver nesta época. Já não poderá viver nesta época...
      Mesmo sem o querermos, toda a nossa vida está cortada de renúncias e fremente de esforço em teu benefício, meu irmão longínquo. Há já muitos milhares de anos que nós vimos senso os rudes e obscursos caboucos da obra gigantesca que tu disfrutas e da qual ainda mal apercebemos os contornos. Dificilmente, porém, me resigno a isto. Eu não queria ser apenas um dos arcos da ponte de passagem que tem levado tantos séculos a atravessar; eu queria estar para lá do rio imensio, queria ficar ao sol, à luz, ficar ao teu lado! Eu queria ser eterno como tu, no teu mundo de fraternidade e de inteligência, onde já não existirão as iniquidades, as dores inúteis e os absurdos que, hoje, se expõem sobre a terra, maculando e diminuindo a sua beleza original. Eu sei que esse mundo, criado pela evolução humana, aberta pelo gênio da espécie, virá a existir; sei que te apossarás do Universo, que dominarás os seus segredos e as suas leis, que te tornáras senhor da vida e que matarás a morte - mas quando eu já não for coisa alguma, quando eu já não for coisa alguma...
E eu não queria deixar de ser! Eu queria estar sempre ao teu lado, amanhã, depois, sempre, sempre - eternamente!
        Eu sei que quando a Humanidade se encontrar dividida em duas épocas distintas - a que obedecia, mísera, efémera, desgraçada, à lei da morte e a que sobre essa lei triunfou - tu, meu irmão, estarás tão longe de nós e serás tão diferente, que até estas inumeráveis vidas que têm morrido não querendo morrer, que têm morrido desejando ser imortais, como tu, parecer-te-ão lendárias, mesquinhas, tristes coisas que não se pertenciam, rebanho de sombras que cobria, inútilmente, o planeta inteiro. Então todos os séculos que já vivemos e viveremos ainda sob o despotismo da morte, a odiarmo-nos uns aos outros, a massacrarmo-nos uns aos outros, a espoliarmo-nos uns aos outros, parecer-te-ão, a ti que triunfaste da morte e dos instintos, que és inteligência e não paixão, compreensão e não ressentimento, uma vasta, sombria, e muda planície. Mas não te rias de nós, irmão longínquo, porque sem nós não terias existido, porque tu és filho da nossa inquietação, uma inquietação milenária, que este meu pobre livro traduz, como um murmúrio, como uma queixa, como um protesto! Nós sabemos que já não nos beneficiará muito do trabalho que realizamos e, contudo, continuamos a trabalhar, a lutar, infatigavelmente, para te deixarmos um legado cada vez maior e mais maravilhoso - razão da tua existência. É esse o nosso orgulho e, por vezes, parece ser, até, a nossa missão. E no entanto, todos nós nos sentimos lesados, porque todos nós queríamos mais do que temos em felicidade e em perpetuidade.
       Meu irmão longínquo, se não puderes continuar a viver na Terra quando o sol se apagar, não me deixes, aqui, entre os mortos. Antes de partires para outro sistema planetário que a tua ciência houver conquistado, escava na terra onde eu e quem o meu coração tiver amado dormirmos o último sono e leva contigo um pouco do pó que guarde, ainda, algo de nós. Assim, morrerei com a sensação de que viverei mais, de que não ficarei abandonado entre os destroços, quando do que fui já não persistir sequer o frágil conforto da minha pobre e atormentada imaginação.