sexta-feira, 31 de janeiro de 2014

Eternidade - a legenda do pórtico (Ferreira de Castro)

Nós não queremos morrer! Nós não queremos morrer!
     Meu irmão longínquo que te perdes na hipótese, sobre o curso de todos os séculos vindouros, escuta!  Escuta o nosso desespero de seres efémeros, esta ansiedade infinita que nos tortura há muitos milênios, este grito doloroso e impotente: Nós não queremos morrer! A nossa vida está pletórica de iniquidades, de misérias, de renúncias e de sofrimentos - e nós, apesar disso, não queremos morrer.
     Tu, meu irmão longínquo, que já mataste a morte, que já criaste um novo mundo sobre o mundo em que vivemos, que já tens uma outra noção do Homem e do Universo, dificilmente compreenderás como nos foi possível viver assim. Este livro explicar-te-á, porém, o nosso drama. É a nossa história que eu te ofereço aqui, a história de todos nós, que queremos ser eviternos e temos de morrer, que queremos ser felizes e nunca o somos, integralmente. Este livro será como uma voz remota, saída de uma noite negra e pânica, que dua não sabemos há quantos milhões de anos e durará, talvez, muitos mais ainda, uma voz que te dirá quanto sofremos e lutamos para que tu possas viver doutra maneira e sorrir, porventura, de nós próprios...
    Tu és a única resposta que encontramos para as nossas angustiosas interrogações. Uma resposta que me alvoroça e, simultaneamente, me desespera, porque eu queria ser como tu, quer ter nascido quando a inteligência humana tivesse assassinado a morte, quando a terra não estivesse como agora, traspassada por tanta dor. E não posso! Não posso! Eu não quero morrer e tenho de morrer, sabendo que não morreria se nascesse mais tarde, não sei quando, mas um dia, o dia em que tu nasceste.
     Não importa o século em que venhas a existir. Estas páginas estão cheias da tua presença e quanto mais longe estiveres de mim, mais perto eu estarei de ti, pressentindo-te, adivinhando-te, como o único consolo e a única razão moral da nossa existência. A tua vida terá, no espaço e no tempo, horizontes que a maioria dos meus contemporâneos dificilmente concebe. Eu sei isto, eu possuo esta certeza, eu vivo com esta verdade e, contudo, tenho de renunciar a ela, vencido por essa voz que vem de ti para mim e me desvaia, me humilha e torna ainda mais desditoso:
  - Esta é a época que tu sonhaste, mas já não poderás viver nesta época. Já não poderá viver nesta época...
      Mesmo sem o querermos, toda a nossa vida está cortada de renúncias e fremente de esforço em teu benefício, meu irmão longínquo. Há já muitos milhares de anos que nós vimos senso os rudes e obscursos caboucos da obra gigantesca que tu disfrutas e da qual ainda mal apercebemos os contornos. Dificilmente, porém, me resigno a isto. Eu não queria ser apenas um dos arcos da ponte de passagem que tem levado tantos séculos a atravessar; eu queria estar para lá do rio imensio, queria ficar ao sol, à luz, ficar ao teu lado! Eu queria ser eterno como tu, no teu mundo de fraternidade e de inteligência, onde já não existirão as iniquidades, as dores inúteis e os absurdos que, hoje, se expõem sobre a terra, maculando e diminuindo a sua beleza original. Eu sei que esse mundo, criado pela evolução humana, aberta pelo gênio da espécie, virá a existir; sei que te apossarás do Universo, que dominarás os seus segredos e as suas leis, que te tornáras senhor da vida e que matarás a morte - mas quando eu já não for coisa alguma, quando eu já não for coisa alguma...
E eu não queria deixar de ser! Eu queria estar sempre ao teu lado, amanhã, depois, sempre, sempre - eternamente!
        Eu sei que quando a Humanidade se encontrar dividida em duas épocas distintas - a que obedecia, mísera, efémera, desgraçada, à lei da morte e a que sobre essa lei triunfou - tu, meu irmão, estarás tão longe de nós e serás tão diferente, que até estas inumeráveis vidas que têm morrido não querendo morrer, que têm morrido desejando ser imortais, como tu, parecer-te-ão lendárias, mesquinhas, tristes coisas que não se pertenciam, rebanho de sombras que cobria, inútilmente, o planeta inteiro. Então todos os séculos que já vivemos e viveremos ainda sob o despotismo da morte, a odiarmo-nos uns aos outros, a massacrarmo-nos uns aos outros, a espoliarmo-nos uns aos outros, parecer-te-ão, a ti que triunfaste da morte e dos instintos, que és inteligência e não paixão, compreensão e não ressentimento, uma vasta, sombria, e muda planície. Mas não te rias de nós, irmão longínquo, porque sem nós não terias existido, porque tu és filho da nossa inquietação, uma inquietação milenária, que este meu pobre livro traduz, como um murmúrio, como uma queixa, como um protesto! Nós sabemos que já não nos beneficiará muito do trabalho que realizamos e, contudo, continuamos a trabalhar, a lutar, infatigavelmente, para te deixarmos um legado cada vez maior e mais maravilhoso - razão da tua existência. É esse o nosso orgulho e, por vezes, parece ser, até, a nossa missão. E no entanto, todos nós nos sentimos lesados, porque todos nós queríamos mais do que temos em felicidade e em perpetuidade.
       Meu irmão longínquo, se não puderes continuar a viver na Terra quando o sol se apagar, não me deixes, aqui, entre os mortos. Antes de partires para outro sistema planetário que a tua ciência houver conquistado, escava na terra onde eu e quem o meu coração tiver amado dormirmos o último sono e leva contigo um pouco do pó que guarde, ainda, algo de nós. Assim, morrerei com a sensação de que viverei mais, de que não ficarei abandonado entre os destroços, quando do que fui já não persistir sequer o frágil conforto da minha pobre e atormentada imaginação.